‘Ser mãe preta e periférica’: sobreviventes do estado genocida da população negra

Morgana Eneile, mãe de 2, feminista negra, doula e mestre em Educação pelo PPGEdu-UNIRIO. Presidenta da ADoulasRJ e diretora de Relações Institucionais da FenadoulasBR, coordenadora do Curso de Qualificação Profissional de Doulas EPSJV/FIOCRUZ.

Qual o impacto da violência no seu nascimento? Sim, todos, todas e todes, invariavelmente, experimentamos o parto primeiramente em nosso próprio vir ao mundo. Fomos paridos, nascidos de um útero envolvido por um ser, que tinha, nesta ocasião, expectativas variadas sobre si e sobre o rebento, mas que não incluía o desejo de ser agredida. De ver seu filho violentado/a.

Sua estreia no mundo foi de dor ou de harmonia? Uma mulher negra chega à maternidade. Seja na área central, seja numa área periférica, seja com doula e acompanhante, ou não. Ela sempre será uma mulher negra a parir e isso a embebe em altas chances de passar situações, no mínimo, indignas.

O que já se passou por ‘ideia da cabeça de alguém’, vem sendo comprovado ano após ano. Infelizmente, não de forma positiva. Os números da mortalidade materna no Brasil seguem em alta (64,5 por cem mil mulheres em 2017, segundo dados do próprio DATASUS1 ), tendo a cor da pele como recorte expressivo nos desfechos e nos tipos de agressões a que são submetidas (para saber mais, busque pela pesquisa Nascer no Brasil, desenvolvida pela ENSP/FIOCRUZ em seu sumário executivo publicado em 20142). Se todas as mulheres são passíveis de serem violentadas no parto, há na pele uma diferenciação objetiva: mulheres negras morrem em consequência do fato de gestar e parir. E esse dado segue acompanhado de recortes territoriais e de acesso à educação e em informação em saúde.

Ao estender uma lupa simples sobre as territorialidades é possível compreender como este índice se relaciona diretamente para mais, em regiões afastadas das zonas centrais, acrescentando ao fator cor/etnia ao tipo de serviço prestado e a qualidade dele – mulheres negras recebem menos analgesia e tem menos acesso à cirurgias cesarianas necessárias, por exemplo.

Como Doula, uma pessoa treinada para acompanhar gestantes durante a gestação, o parto e o puerpério, me deparo de forma recorrente com o racismo institucionalizado que faz as suas vítimas. Faz parte da construção do modelo obstétrico a misoginia e a descrença na capacidade fisiológica recorrente, mas para uma grande parte dessa população de parturientes, não se pode falar de violência obstétrica pura e simples, mas de racismo obstétrico. É de negação dos mesmos meios, ainda que precários. 

Como Doula, uma pessoa treinada para acompanhar gestantes durante a gestação, o parto e o puerpério, me deparo de forma recorrente com o racismo institucionalizado que faz as suas vítimas. Faz parte da construção do modelo obstétrico a misoginia e a descrença na capacidade fisiológica recorrente, mas para uma grande parte dessa população de parturientes, não se pode falar de violência obstétrica pura e simples, mas de racismo obstétrico. É de negação dos mesmos meios, ainda que precários. 

Este conceito tem sido defendido a partir da elaboração de Dana Ain Davis4, professora no Queens College (Nova Iorque), como uma ameaça à vida das mulheres e recém nascidos, uma vez que em regiões afastadas das zonas centrais mulheres negras recebem menos analgesia e tem menos acesso à cirurgias cesarianas necessárias, por exemplo. não se trata somente de uma abordagem inserida no contexto das violências obstétricas de cunhos emocionais, informacionais e físicas, mas da recorrente negligência e abandono sistemático, que obsidia mulheres negras de diferentes posições sociais – haja visto o relato de Serena Willians, famosa tenista norte-americana. Se com os recursos que podia dispor é alvo de tal descaso, imaginemos pretas periféricas a quem muito já é negado.

Enfrentamentos cotidianos têm sido feitos, em especial por mulheres periféricas, para dar à luz tal problemática. Na Zona Sul de São Paulo, Danie Sampaio, doula e terapeuta, constrói o projeto Mãe na Roda5. Inicialmente financiado através de iniciativa da gestão pública paulista de iniciativas culturais locais, se tornou uma referência sobre como debater o exercício da maternidade (e o do gestar e parir) a partir do território e do recorte racial, articulando práticas lúdicas e da arte/ educação para transmitir informação em saúde, possibilitando novas perspectivas envolvendo redes complexas de profissionais diversos, movimentos sociais e de mulheres. Hoje, sem sede e sem apoio, se prepara para em maio próximo realizar o seu primeiro festival na Casa de Cultura do M’Boi Mirim. Em meio as diversas atividades, o festival vai falar de direitos, sobre outros modos de parir longe da cultura material do parto que cristalizou como normal sermos violentadas e desejar o recurso cirúrgico como fuga estratégica. O autocuidado das mulheres como cura e como projeção. 

No Rio de Janeiro, a iniciativa Doula a Quem Quiser6 vem engatinhando se apropriando de tecnologias que aproximam as mulheres para reconhecerem seus direitos. A ação, desenvolvida pela ADOULASRJ através de financiamento do Canal Negras Potências, viabilizado pelo Instituto Movimento Coca Cola, em parceria com o Fundo Baobá, possibilitou levar parte das práticas utilizadas por Danie para a Zona Oeste do Rio de Janeiro e a criar uma plataforma de denúncia sobre os casos de violência obstétrica (veja em www.violenciaobstetricafale. com.br). Mais que um espaço de denúncia ele é um espaço formativo acessível com cartilha sobre Direitos na gestação, parto e puerpério de Hoje, se prepara para realizar em maio o primeiro festival na Casa de Cultura do M’Boi Mirim. Em meio as diversas atividades, o festival vai falar de direitos, sobre outros modos de parir forma ampla, para além das questões de saúde, mas que envolvem as peculiaridades do período. 

O cenário, no entanto, é árido. Até mesmo a legislação do direito ao acompanhante (criada em 2005), que antes vinha sendo encarada com uma boa prática em expansão, vem sendo constantemente desconsiderada no dia a dia. Ao mesmo tempo que leis para o direito ao acompanhamento de Doulas e que tratam do direito ao parto digno e respeitoso, também cresceram, sobram desculpas para dificultar o acesso. Há sempre boas motivações para isso: é muito mais fácil ser negligente e violento sem as vistas de terceiros e ter parturientes suscetíveis à aceitação do distrato como procedimentos ‘salvadores’ em desfechos de ‘alívio’, quando dá certo. Permeados pelo medo da retaliação, somada ao sentimento de gratidão, refletem nas baixas reclamações para ouvidorias e consequente dificuldade de gerar subsídios para que se cobre efetivas mudanças na prática das unidades de saúde.

É preciso coragem para enfrentar o sistema. Responsabilizando não as vítimas, mas como o estado produz o aniquilamento do povo preto também quando se trata de atenção obstétrica. 

Assim, para não dizer que não tratei da esperança que nos move, acredito na ampliação de redes de apoio à causa como parte primordial de qualquer perspectiva que tenhamos para alcançar outras realidades. Não é só sobre saúde. Não é só sobre uma fase da vida e de escolhas. Falar de como nossas crianças vêm ao mundo não deve ser um tema de quem deseja tê-las. É necessário que, para pretinhas e pretinhos experimente sua chegada à este universo de forma digna e respeitosa, o envolvimento e responsabilização coletiva.

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